Os carrões e os carrinho’eiros

Por Sirlene Araújo (Colaborador). 

Com seu carro, Fernando Martins atravessa as principais ruas e avenidas de Curitiba para seu trabalho diário. Todo dia a mesma rotina. Trajando uma camisa polo azul piscina e uma calça destroyed, rasgada nos joelhos (tá na moda), ele guarda neste mesmo carro suas sacolas, as caixas de leite, garrafas de refrigerantes, caixa de ovos, de chocolates Nestlé, os copos descartáveis, a caixa de esfihas Habib’s e outras tantas variedades de caixas. Nada orgânico. Pelo carro cheio, parece que o dia foi bom. Fernando poderia ser um homem qualquer em um dia comum de ida ao trabalho e compras no fim do dia em um supermercado ou fast food. Mas Fernando não é nem de longe um homem qualquer com uma rotina comum, ele é um carrinheiro. Para quem não sabe, carrinheiro é o nome dado a catadores de materiais recicláveis, também conhecidos como papeleiros. O carro de Fernando não é um automóvel, mas sim, sua ferramenta de trabalho. É nele, que todos os dias ele carrega o fruto de seu sustento e sobrevivência. Sua calça rasgada não é em nome da moda e sim pelo fato de ser a que encontrou numa das lixeiras em que vasculhava, e, mesmo rasgada, lhe serviu melhor que a anterior, que parecia ser de alguém vinte quilos mais gordo.

Fernando não é o único por aqui, nessa região do bairro Rebouças em Curitiba. É normal encontrarmos muitos carrinheiros, cada um com seu estilo e carrinhos diferentes. Tem para todos os gostos, pequenos, médios, grandes, com duas rodas, triciclos e até com quatro rodas. Para uns poucos, mais sortudos, há as kombis, automóvel utilitário da Volkswagen, que durou de 1950 a 2013, deixando de existir apenas pela obrigatoriedade de freio tipo ABS e possuir air-bag frontal duplo, exigidos no ano 2014. Mas voltando ao nosso foco, é por aqui a terra em que vivem os carrinheiros, que estão em outros bairros também, mas a grande maioria fica por aqui. Fernando vive na rua Imaculada Conceição, próximo a um jornal tradicional. É ali nas redondezas que ele monta sua casa improvisada, em um estacionamento qualquer. Em dias chuvosos, serve também o ponto de ônibus, para se abrigar melhor dos pingos malvados.

Os carrinheiros têm muitas coisas em comum, as costas um pouco corcundas por conta do esforço de carregar tanto peso todos os dias, se curvam para frente para vencer as subidas e isso acentua a deformidade da coluna. As mãos são calejadas, já que ficam o dia todo empurrando os carrinhos de ferro, sem nenhuma proteção. Também possuem a capacidade de empilhar coisas, organizar a pilha enorme, chegando muitas vezes a quase dois metros de altura, para otimizar o espaço do carrinho e aproveitar a logística da viagem.

É esse o trabalho que realizam diariamente, separando o que é útil para a venda e descartando os desnecessários. E não é um trabalho tão fácil assim, devido aos dejetos orgânicos entre os recicláveis. “E cheiram mal, muito mal mesmo”, expressa Fernando, tapando o nariz e baixando os olhos sofridos. Eles, os carrinheiros, protegem-se de doenças, utilizando nas mãos sacolas plásticas, muitas vezes na falta delas, serve uma embalagem de papel higiênico mesmo ou o saco do arroz de cinco quilos, descartado por alguém que certamente teve uma boa refeição no almoço. Após a divisão, ainda existe o trabalho de levar até o ponto de venda, momento mais feliz do dia, receber o retorno do sacrifício diário. Plástico faz volume, mas pesa pouco. Os preços variam de cinco a vinte e cinco centavos o quilo. Alumínio pesa mais. “Dá pra sobreviver”, conta a carrinheira Maria Luíza, que tem mais sorte que Fernando, já que mora em uma casa, simples, “Mas dá para morar”, palavras dela mesma.

Catadora há mais de oito anos, ela diz que sem opção de empregos, devido ao analfabetismo, começou a reciclar para complementar a renda do marido que trabalha na construção civil, como servente. Esse sobreviver que ela, e até mesmo o Fernando conta, significa ganhar de R$ 4,15 a R$10 por dia, sendo dez nos dias muito bons. Quando perguntado o que mais eles desejam, surpreendentemente não respondem sair dessa situação, ter outro emprego, ter uma moradia mais digna, dinheiro, carrões, nada. O que eles respondem é que querem apenas “que as pessoas separem o lixo para facilitar o trabalho da reciclagem”.

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